Pobreza e abandono traduzem a situação atual dos mais de 11 mil índios pataxós do extremo sul do Estado.
Hoje, eles vivem divididos em sete terras indígenas (TI): Coroa Vermelha e Mata Medonha, no município de Santa Cruz Cabrália; Imbiriba, Aldeia Velha e Barra Velha, em Porto Seguro; e Águas Claras e Corumbauzinho, em Prado.
PORTO SEGURO, SANTA CRUZ CABRÁLIA E PRADO (Da Sucursal Extremo Sul) – Nas terras indígenas do extremo sul, o investimento em educação é mínimo, para não dizer inexistente, e o atendimento médico oferecido nos postos da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) deixa muito a desejar. Mas ainda é a demarcação definitiva do território que lhe cabe a principal reivindicação dos primeiros donos da terra.
A antropóloga Leila Burger Sotto-Maior, da Fundação Nacional do Índio (Funai), estuda a região desde agosto de 2004 e faz um levantamento da situação fundiária. Dados da pesquisa mostram que apenas quatro das terras indígenas (TI) estão homologadas, mas três destas ainda mantêm demanda por processo de revisão de limites.
A TI Imbiriba já foi demarcada e aguarda a homologação pelo presidente da República. Corumbauzinho e Aldeia Velha estão em processo de identificação.
Como forma de pressão para que seja concluída a demarcação de todas as terras, os pataxós reiniciaram as retomadas (ocupação de fazendas e parques nacionais) em 1999. Hoje, no extremo sul, são 13 as áreas de retomada, três delas dentro do Parque Nacional do Descobrimento, no município de Prado.
A equipe de reportagem da Sucursal Extremo Sul visitou quatro das terras indígenas e conta o que viu por lá.
ALDEIA-MÃE – Na TI de Barra Velha, litoral sul de Porto Seguro, vivem aproximadamente cinco mil índios divididos nas aldeias de Barra Velha (aldeia-mãe), Boca da Mata, Meio da Mata, Guaxuma, Trevo do Parque, Bugigão, Pé do Monte, Craveiro, Águas Belas e Corumbauzinho. Segundo Sotto-Maior, a TI de Barra Velha já foi homologada, mas está com demanda por revisão de limites.
No ano de 1951, houve um grande massacre na aldeia-mãe, isso fez com que os parentes (forma de tratamento entre os índios) fugissem da aldeia e se espalhassem pela região. A índia Rosalina, de 94 anos, conta que, naquele ano, a polícia cercou a aldeia para prender dois assaltantes que haviam se refugiado na área. Segundo Rosalina, após matar os assaltantes, os policiais permaneceram na aldeia maltratando os índios.
"Eles não mataram nenhum índio, mas bateram tanto que os mais velhos não resistiram e acabaram morrendo. Muitos parentes fugiram daqui naquela época. Tenho um irmão que foi embora e eu nunca mais vi", conta Rosalina. Depois desse massacre, o cacique proibiu a entrada de brancos na aldeia, atualmente que os "caciques mais modernos" liberaram novamente a entrada de brancos.
Rosalina é uma das mais velhas da aldeia-mãe, conhecida como a parteira e, hoje, com 94 anos, ainda "agarra" crianças. O último parto que acompanhou foi o nascimento de seu tataraneto, o pequeno Kaina (Feliz), nascido no dia 29 de março.
Segundo Sotto-Maior, a aldeia-mãe vive uma situação aparentemente estável, se for avaliada apenas a vila central, onde existem uma escola e um posto de saúde da Funasa, mas basta um deslocamento em direção à Boca da Mata para se deparar com extrema pobreza e abandono.
O posto da Funasa funciona uma vez por semana, quando o médico visita a aldeia. Nos outros dias, os índios têm que contar com a sorte. Semana passada, uma criança passou mal e acabou sendo socorrida pela antropóloga e sua equipe, que conduziram o menino até o hospital de Porto Seguro.
VALORIZAÇÃO – O resgate da cultura pataxó está sendo trabalhado na escola. A valorização dos adereços e vestimentas indígenas é o tema das aulas de cultura do professor Maurin. Os cantos, as brincadeiras e a língua pataxó são os destaques das aulas de alfabetização do professor Carleone. "Temos que fazer esse tipo de trabalho. Apesar de estarmos longe da zona urbana, temos contato com a televisão, e isso está fazendo com que nossa cultura seja esquecida", lamenta o cacique Arurauã (o nome significa um peixe que se adapta na água e na terra, se adapta em todas as situações, explica o cacique).
Com o apoio do Sebrae, os índios de Barra Velha fundaram uma associação de artesãos e estão vendendo o artesanato de sementes para outros estados e pensam em criar a grife pataxó, forma de dar mais valor ao trabalho por eles desenvolvido.
FAVELIZAÇÃO – Em Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália – ponto de referência histórica da chegada dos portugueses, vivem hoje 667 famílias. A TI foi homologada com 1.493 hectares, sendo 827 deles destinados à preservação – Reserva Indígena da Jaqueira, 75 hectares de praia (zona urbana), a área restante está dividida para agricultura.
Desde 1999, Coroa Vermelha vem sofrendo com o processo de favelização, dado o grande contingente de índios que se desloca para o local em busca de sobrevivência. "Na Aldeia de Coroa Vermelha tem tudo de ruim que pode existir numa zona urbana", avalia a antropóloga.
Falta saneamento básico e há violência urbana e alcoolismo. "Não temos um espaço para fazer uma horta. Só tem uma área onde podemos plantar, mas o solo é tão ruim que tudo que plantamos morre", reclamam os índios.
Em 2000, para a comemoração dos 500 anos de descobrimento, foram gastos R$ 11 milhões em urbanização, saneamento e na construção de 150 casas para os índios. Mas, durante as comemorações, com a primeira chuva forte, as fossas transbordaram e os esgotos passaram a correr a céu aberto, ilhando algumas residências.
Em Coroa Vermelha, há o único posto da Funasa com atendimento diário, com uma equipe de enfermeiros e técnicos de saúde. O médico atende uma vez por semana. No dia 11 de março, a equipe do posto da Funasa de Coroa Vermelha realizou um dia de pesagem para crianças de até 5 anos e constatou que há um alto índice de crianças abaixo do peso. De cada quatro pesadas, três estavam abaixo do peso, muitas com risco de desnutrição.
Sobrevivência é a meta de todo dia
Na TI de Aldeia Velha, também em Porto Seguro, vivem 150 famílias. A área foi demarcada em 1988, mas ainda está em processo de identificação, aguardando do resumo do relatório no Diário Oficial da União.
A Aldeia Velha fica numa zona urbana, mas diferentemente de Coroa Vermelha, preserva certa privacidade. Há uma porteira para entrar na área e, nos 1.400 hectares da TI, ainda existe uma grade de mata nativa que os índios lutam para preservar.
A saúde é mais uma vez apontada como o principal problema. O posto da Funasa funciona uma vez por semana mas, perto dali, no posto de saúde municipal, os médicos e enfermeiros se negam a atender a comunidade indígena. "Precisamos pelo menos de um carro adequado para transportar os doentes e alguém que possa ao menos fazer um curativo de emergência", alerta o cacique Ipê, que coordena o grupo de 500 índios.
Não tem energia na área e o reservatório de água instalado pela Funasa há um ano está parado, o encanamento ainda não foi concluído. "Temos que carregar baldes de água na cabeça", conta Ipê. Segundo ele, a única escola da aldeia foi construída este ano pela prefeitura, pois "antes as crianças estudavam no galpão onde fica a farinheira".
Nas duas salas de aula estudam 150 crianças, do pré à quarta série primária, os professores são cedidos pela prefeitura, mas ainda aguardam a assinatura do contrato para passar a receber o pagamento. Como a área indígena é recente, o grupo ainda está começando a se estruturar. Tanto que a união de todos em torno de um ideal foi motivo de comemoração numa reunião com o chefe da Funai de Porto Seguro, na última semana. "Gostei de ver que hoje vocês estão lutando juntos, sem aquelas brigas de antigamente", ressaltou Zeca Pataxó.
Uma reserva extrativista de madeira e uma área onde eles possam fazer uma horta comunitária é o principal objetivo dos índios, que solicitaram a ajuda do Ibama para produzir sem prejudicar a mata. "Temos consciência da preservação, mas também precisamos de madeira para construir as nossas kijeme (casas) que estão em estado precário e de uma área para cultivar uma horta, muitas famílias aqui não têm nem uma hortinha", disse o cacique Ipê.
Viva Tupã que veio nos trazer maion (luz) – "Na minha aldeia tem belezas sem plantar /Eu tenho arco, eu tenho flecha, tenho raiz para curar", esse é o primeiro refrão da principal oração pataxó e é na Aldeia de Mata Medonha, também no município de Santa Cruz Cabrália, onde essas palavras fazem sentido.
É na mais isolada de todas as terras pataxós, que os índios ainda conservam sua cultura, o orgulho pelos seus antepassados e o respeito pela natureza. Os 500 hectares de Mata Medonha estão completamente tomados pela mata nativa. A TI já foi homologada, mas ainda está com demanda por revisão de limites.
A agricultura de abacaxi e de mandioca de onde sai o sustendo das 40 famílias que lá vivem é desenvolvida de forma a não prejudicar a natureza, agricultura orgânica.
Com o apoio da Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira (Ceplac), os índios estão formando uma associação para expansão desse tipo de agricultura. "Antigamente eu não me importava quando via derrubarem uma árvore, mas hoje acho lindo quando vejo uma área verde dessas com tudo preservado. Se não cuidarmos, o que nossos netos e os filhos deles vão ver quando crescer?", diz o índio Urussu, um dos mais velhos líderes da aldeia, durante uma conversa descontraída na sombra da árvore, onde os índios costumam se reunir para tomar decisões sobre a comunidade.
Há poucos anos foi aberta uma estrada de chão que dá acesso à área, que nos dias de chuva fica intransitável. "Que bom que vocês estão aqui. Eu sempre disse para os mais novos que tivessem paciência, que o nosso dia ia chegar. Está chegando o nosso momento de aparecer", revela o índio Urussu. "Urussu é uma abelhinha doce que faz um mel muito gostoso", faz questão de explicar.
Problemas parecem não existir em Mata Medonha. Ingênuos e alegres, os índios se mostram contentes com o que recebem. "O médico vem aqui uma vez por semana. Graças a Deus temos isso. Antigamente não tínhamos nada", festeja Urussu. E completa, modesto: "Só precisamos de um carro para escoar nossa produção de abacaxi, de ajuda para a preservação da mata e que saia a demarcação dos 24 alqueirões de nosso território".
Os índios de Mata Medonha estão sofrendo com a pressão de alguns fazendeiros do entorno da TI para a destruição da mata nativa. Esse também foi um dos problemas apontados pela antropóloga Leila Burger Sotto-Maior, da Funai. Ela observa que, além do desmatamento, está ocorrendo o comprometimento da água consumida na aldeia, pois os donos de uma fazenda vizinha estariam jogando restos de madeira no rio.
No dia 7 de abril, os fiscais do Ibama estiveram na região. Encontraram uma grande área de mata desmatada e quatro fornos de carvão em uma fazenda vizinha. Os fornos foram destruídos e apreendidos um trator e uma motos-serra.
Na única sala de aula existente em Mata Medonha estudam 30 crianças, durante o dia, e 27 adultos, à noite. Pela manhã, a professora Sandra, que não é descendente pataxó, atende na mesma sala os alunos do pré à 2ª- série do ensino fundamental. À tarde é a vez dos alunos da 3ª- à 4ª- série. "Eu ensino e aprendo ao mesmo tempo", faz questão de revelar a professora Sandra, que já trabalha há três anos no local.
"Eu tenho 50 anos e estou estudando. Não estudei antes porque antigamente nós pensávamos que o estudo não servia para nada", disse uma das índias (não quis revelar o nome). Valorizar o que a natureza oferece e o que antepassados deixaram tem sido a filosofia de vida das 40 famílias que vivem em Mata Medonha.
O resgate e a preservação da cultura estão sendo trabalhados na sala de aula e nas conversas diárias entre idosos, jovens e crianças ao pé da árvore, na área central da TI. Conversas onde são relatadas histórias como a do pé-de-garrafa, uma espécie de monstro que protege a mata e que muitos afirmam já ter visto.
O porquê do nome da aldeia é também explicado pelos mais velhos. "Lá por 1964, quando os viajantes passavam pela região, eles diziam que iam "por essa mata medonha aí" que era mais rápido. Aí ficou o nome. Vou escrever um livro com todas nossas histórias e enviar para vocês. Tenho que fazer isso antes que elas se percam", conclui Urussu.
CONSERVAÇÃO – Os conflitos envolvendo a população indígena e as unidades de conservação ambiental também são antigos. Na década de 80, parte do Parque Nacional do Monte Pascoal foi transformada em terra indígena, a Aldeia do Pé do Monte. O decreto que transformou a área em parque nacional ainda não foi derrubado e há uma sobreposição de documentos em relação à aldeia. "Isso tem que ser resolvido", afirma Sotto-Maior.
Desde 2001, o Parque Nacional do Monte Pascoal é administrado em conjunto pelo Ibama e pelos pataxós, mas segundo Sotto-Maior, os índios têm pouco poder de decisão, servindo apenas de motoristas, eventuais colaboradores e brigadistas no combate a fogo.
O Parque Nacional do Descobrimento, no município de Prado, também faz parte da área reivindicada pelos índios. No final do ano de 2003, três áreas do parque foram retomadas, os índios permanecem no local até hoje, aguardando a conclusão do estudo do GT.t